Ao
pesquisar cuidadosamente os eventos da Batalha de Quifangondo, o
historiador militar russo Serguei Kolomnin preenche quase em
definitivo as lacunas existentes nesse momento ímpar na criação de
um estado em tempos modernos. Digo “quase”, pois as dificuldades
são imensas para romper com as vaidades e interesses pessoais nos
relatos desse acontecimento, que hoje tem mais heróis que
combatentes na época. Cubanos que insistem em viver ainda hoje num
mundo irreal que só sobrevive na propaganda que encobre a pobreza
atroz trazida pelo comunismo ingenuamente levado ao pé da letra - como
na paupérrima Coreia do Norte - exageram seu papel bem no anacrônico
estilo stalinista; sul-africanos fantasiam e criam uma “retirada
heroica” para encobrir sua vergonhosa deserção em pleno combate; zairenses ficam calados para evitar perguntas constrangedoras e
querem esquecer suas desaventuras vergonhosas em Angola; angolanos de
ambos os lados relatam verdadeiros contos infantis que me fazem
lembrar o nosso herói militar brasileiro Duque de Caxias “com as
granadas explodindo nas patas de seu cavalo e com a espada
desembainhada, gritando: siga-me quem for brasileiro!” Criança, eu lastimava pelo cavalo... As histórias destinadas à formação artificial de
um orgulho nacional são geralmente assim forjadas, não resistem a
um estudo mais crítico. Tarefa difícil e inútil tanto no Brasil,
formado com “tribos” tupis, tapuias, guaranis, italianas,
portuguesas, alemãs, japonesas, como nos países africanos,
artificialmente construídos pelos países colonizadores e que juntam
no mesmo balaio etnias várias, incompatíveis em hábitos,
tradições, fisicamente diferentes, algumas inimigas inconciliáveis…
Portanto,
que tal sermos honestos e racionalmente, deixar de lado as grandes e
heroicas historietas de nacionalismo puro, empunhando bandeiras ao
vento e destroçando o inimigo? Quifangondo, batalha de vital
importância para o futuro politico de Angola, foi o improviso da
pressa de um lado contra a confortável posição geográfica dos
defensores do outro lado, que pelos números do próprio MPLA só
morreram uma meia dúzia, no máximo. Provavelmente no mesmo dia deve
ter morrido mais gente atropelada em Luanda no caótico trânsito
provocado pelos carros abandonados pelos portugueses em fuga para a
Europa e guiados por africanos sem experiência…
No
livro “Batalha Histórica de Quifangondo”, Serguei Kolomnin busca
com eficiência os detalhes, confronta os relatos dos participantes,
procurando ser imparcial (mesmo chamando de “internacionalismo
puro” o puro intervencionismo soviético e de seus afilhados cubanos).
Desfaz com seu trabalho injustiças históricas, como a insistência
angolana de menosprezar e mesmo encobrir a decisiva ajuda soviética
de última hora para se valorizar e até, usando as próprias
definições da Convenção Internacional contra o Recrutamento,
Utilização, Financiamento e Treino de Mercenários, corrige a
acusação de mercenários, usada por muitos, ao idealista grupo do
Coronel Santos e Castro e do Major Alves Cardoso, do qual fiz,
honrosamente, parte. Ambos oficiais eram angolanos de nascimento,
respectivamente Lobito e Nova Lisboa; Angola ainda era uma província
portuguesa, o que justificava a nossa presença nos combates; muitos
dos portugueses também eram africanos que jamais haviam posto o pé
na Europa e o único que poderia ser considerado um estrangeiro, (mas
menos que os cubanos, zairenses, soviéticos) era eu, nascido no
Brasil mas com dupla cidadania portuguesa. Nenhum pagamento fora
prometido no recrutamento e sim a paga maior: ajudar na construção
de um novo país com nossos valores ocidentais. Por isso, sermos
confundidos com os aventureiros de língua inglesa que só apareceram
no final do conflito sempre nos incomodou. Por isso, devemos agradecer
ao nosso antigo inimigo, autor dessa obra, pela honestidade e
profissionalismo. Cita também meu relato sobre a deserção sul africana com seus obuses 140 que poderiam nos ter dado a vitória, mas que hoje, em livros e textos, procuram justificar com mentiras patéticas, afirmando que o Coronel Santos e Castro é que os abandonou sem proteção, sendo que sempre, até o final do combate, estivemos alguns quilômetros à frente da bateria de obuses. Transformaram a vergonhosa fuga em uma epopeia digna da 1ª guerra mundial, com os obuses sendo rebocados em estradas enlameadas, sem ninguém entre eles e o inimigo, sendo que só percorreram asfalto até Ambriz! E o General Ben Roos também somou-se à lista de "heróis"...
Mas
o facto principal, linha mestra dessa obra, é o papel indiscutível
dos BM-21 russos na batalha. Num ousado esforço de pilotos
soviéticos, esse equipamento foi transportado por milhares de milhas
e colocado pronto para a ação no momento decisivo. E o resultado
principal, insisto, foi o psicológico. O maciço bombardeamento,
concentrado em nossas posições, criou o pânico na tropa africana,
que sendo de fracos valores ideológicos, sem noção profunda de
nacionalidade, aterrorizada, só pensou em salvar a própria pele e
evitar a todo custo repetir a experiência. Devo lembrar que nós, os Comandos Especiais de Santos e Castro e Alves Cardoso, ao conquistar com facilidade o norte de Angola para a FNLA, fomos várias vezes alvejados pelos 122 através de lançadores individuais, o que não nos causava a mínima preocupação ou danos maiores. O que se viu depois de
Quifangondo foi a desmotivação total do ELNA, um caminhar em
direção à fronteira do Zaire, enquanto eu comandava um pequeno
grupo atrás de pontes destruídas, procurando ser a pedra no caminho
dos cubanos, retardando-lhes o fácil avanço.
Mas
notei um certo desconforto do General Xavier, angolano, que
efetivamente participou do combate, em posição vulnerável na linha
de frente e merece nosso respeito. O relato de sua atuação na
batalha, no manejo do canhão 76, coincide com as informações
repassadas pelo condutor da Panhard 90 atingida, que conseguiu
escapar e posteriormente fez parte de minha tripulação até o final
da guerra no norte. Mas acredito que o general não apreciou a falta
de colorido nacionalista angolano no livro do aliado Kolomnim! Também
não concordou com minha opinião sobre a ineficiência do 122 como
arma de resultados físicos, no terreno, e demostra bons
conhecimentos sobre o míssil que empregou muitas vezes. Mas
perguntaria eu, até com certo humor, ao general: quem pode opinar
com mais precisão sobre o efeito de uma pedrada? O garoto que atira
ou aquele que a recebe na cabeça? O sr é o atirador, mas eu sou o
alvo! Pelas contas cubanas, foram cerca de 700 mísseis, pela CIA,
milhares. Todos concentrados na baixada do Panguila, cujo centro era
a ponte, meu ponto de ação. Eu estava lá, não dentro de um
abrigo, mas cruzando a ponte, correndo, rastejando, resgatando
colegas feridos, avançando, retrocedendo, passando informações, e
estou aqui, sem maiores arranhões, resmungando acerca de
ineficiência do 122 em causar maiores baixas físicas… Se nossas
baixas aparentemente aceitas por ambos os lados foram de
aproximadamente 350 homens e usando os números cubanos, teremos o
uso de 2 mísseis para cada inimigo atingido, inimigo esse que estava
em campo aberto, sem qualquer abrigo! Mantenho minha opinião admitindo porém se não fosse o desmoralizante efeito em Quifangondo, provavelmente
Angola hoje estaria, no mínimo, dividida em Angola do Norte e Angola do Sul, tal
qual aconteceu com Coreia e Vietnam.
Mas
os estrondos dos mísseis 122, na Batalha de Quifangondo, atingiram mortalmente a alma dos
nossos combatentes...