©
2015 pedro alberto marangoni
...e
o escritor se fez marinheiro, desgostoso com a perda de seu amor.
Puro exagero poético num tempo em que os amores vão e vêm, que os
casamentos pouco duram além da lua de mel… Mas Diogo tinha uma
alma à moda antiga e olhos que viam apenas o que sua mente romântica
idealizava. Sua musa nada tinha de especial, jovem cheia de corpo e
vazia de cabeça, mas era para ele “uma mulher rara, recatada e
inocente”, o porto seguro numa vida em que a inconstância como
funcionário ofuscava seus méritos profissionais. Tinha diplomas
técnicos, mas queria ser um poeta. E de devaneio em devaneio ia
perdendo bons empregos, sem se importar, nefelibata… Aproveitava os
desaires para seus versos, sempre dirigidos à namoradinha insossa…
E chega o dia do Armagedom, o Apocalipse, a descoberta de que sua
musa, seu porto seguro, também servia de ancoradouro a outros
marinheiros de terras distantes ou mesmo muito próximas. Sentiu a
cabeça coroada, mas não com os louros da vitória literária que
almejava…
Não
deu outra: arrasado, lançou-se ao mar como os românticos de séculos
atrás, depois de uma providencial ajuda de conhecidos e um rápido
cursinho para obter os documentos necessários. Contratado como
auxiliar de cozinha, suspirou fundo, viu o Rio de Janeiro de seus
desgostos, sua Baía da
Decepção, ir ficando para
trás e, mãos na cintura, mais ou menos firme no convés de um navio
de containers,
brisa marítima na face, sentiu-se rumo ao desconhecido, ao
sofrimento sem fim -dor perene do amor perdido- às bebedeiras em
cais sujos com prostitutas no colo, barba por fazer, cigarro na boca,
o nome da infiel tatuado no braço, brigas de facas, piratas
sanguinolentos… Despertou com os palavrões proferidos pelo
cozinheiro, seu chefe, que o colocou de volta à realidade,
descascando batatas e lavando o chão até a tempestuosa noite,
semanas depois, quando, numa rara folga, avistou ao longe as luzes da
mítica Hong Kong. Correu para a proa, abriu os braços em triunfo
como vira no filme Titanic, cheio de vida e entusiasmo, fustigado
pela chuva. E, antes que abrisse a boca para gritar “sou
o rei do mundo”, numa
cena mais de comédia que de tragédia, uma rajada de vento o lançou
ao mar...
...Depois
de procelosa tempestade,
Noturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento...
Noturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento...
Versos,
em forte sotaque português o despertaram, completamente confuso, sem
ao menos, momentaneamente, saber quem era.
-Por
Neptuno, até que enfim acordas, homem! Já se passaram duas noites
entre reviradas de tripas e delírios!
-Onde
estou? O que aconteceu?
-Estás
em terra firme, marujo! Em terras do Rei de Portugal no Oriente! Ou
melhor, em terras do Oriente somente, as coisas por aqui mudam
rápido, bastam uns poucos séculos e tudo já está diferente! Ah,
este mundo louco!
Diogo
não entendia nada, enjoado, com uma dor de cabeça lancinante, devia
ser ressaca, aquela caipirinha com vodca no Leblon… Leblon? O
navio! Lembrou-se subitamente de tudo, até a queda. Depois mais
nada.
-Morri?
-Num
paraíso aportaste, mas sem que a Morte
o nó de sua vida desatasse,
apenas bebeste metade do Mar da China; até a maré baixou…
-Quem
é você?
-Também
gostaria de saber… Sou já
do que fui tão diferente
que, quando por meu nome alguém me chama, pasmo, quando conheço que
ainda comigo mesmo me pareço - respondeu
lentamente, olhando para além, para o nada, sonhador...
-Puxa
vida, estou quebrado, me dá uma mãozinha aqui, cara, vou tentar me
levantar.
-Falas
minha língua, mas com um sotaque desconhecido e palavras estranhas;
certamente nativo não és da ocidental
praia lusitana. De que
terras vens?
-RJ
-Erre
Jota?!
-Rio
de Janeiro, Brasil!
-Brasil…
boa madeira, dá um bom corante, cor de brasa… belas índias… Não
conheço este rio de que falas, mas certamente não é maior que o
Zhu Jiang, de cujas águas também certamente bebeste!
-Estou
em Hong Kong?
-Não,
estamos na mais bela pérola que esse rio deu ao homem, aqui é nossa
velha e querida A-Ma-Gao!
-Seria
Macau?
-Exato!
Estás na Cidade do Santo Nome de Deus de Macau… Corrijo, já mudou
também, agora é só Macau… Mudam-se
os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas
qualidades…
Diogo,
desperto pela curiosidade, pelo momento irreal que era reforçado
pelas palavras poéticas que ouvia e que o assustavam, mas
desconfiado de que apenas estava a sonhar, procurou sentar-se e
começou a melhorar, sentir o corpo, clarear a mente. Notou suas
vestes secas, sinal de que já se passara um bom tempo desde que fora
resgatado. Olhou para o estranho que provavelmente o retirara do mar,
salvara sua vida. Seria talvez um marinheiro ou pescador, descalço,
barbado, trajando apenas uns calções largos e uma camisa de algodão
grosso. Notou que faltava àquele homem de aparência vigorosa e
guerreira, um olho, o direito. Mas a face tinha um quê de majestade,
a barba espessa, os bigodes retorcidos para cima à moda antiga…
-Você
me salvou? Como vim parar aqui?
-Apenas
o recolhi na areia e procurei esvaziá-lo, estavas como uma pipa de
água salgada!
-Eu
lhe agradeço, amigo; meu Deus, pensei que era meu fim quando caí…
que desespero!
-Nos
perigos grandes, o temor é maior muitas vezes que o perigo.
-Você
tem frases de poeta! Mora aqui?
-Moro
na vila, mas gosto de perambular, sentar-me entre as pedras da gruta,
ficar isolado, meditar...
-Me
parece deserto, não é perigoso?
-Anda
sempre tão unido o meu tormento comigo que eu mesmo sou meu perigo.
Faz-me bem o isolamento. Meu trabalho não é dos mais alegres…
-O
que você faz?
-Sou
Provedor-mor
dos Defuntos e Ausentes!
-Profissão
estranha, nunca ouvi falar…
-É
o que me conseguiram, e graças a uns bons amigos; a situação em
Lisboa não era das melhores.
-A
minha também não era boa no Brasil, onde perdi meu grande amor…
Mas depois dessa minha quase morte, começo a ver a vida com outros
olhos, quero vivê-la apesar de tudo, recomeçar!
-O
amor… aqui o encontrei, mas para mares revoltos o perdi. Agora ela
repousa lá no Céu
eternamente, e viva eu cá na terra sempre triste...
-Ânimo
senhor, é preciso ânimo!
-Meu
jovem náufrago do mar, arriscas-te a naufragar também em terra com
tão cândido entusiasmo! Pouco
sabe da tristeza quem, sem remédio para ela, diz ao triste que se
alegre; pois não vê que alheios contentamentos a um coração
descontente, não lhe remediando o que sente, lhe dobram o que
padece… A realidade é
cruel e disso provei em minha já longa vida:
os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos; e para mais me
espantar os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos… A
verdadeira afeição na longa ausência se prova e
se já liberto te sentes das mágoas e das saudades, o que possuías
não era o verdadeiro amor. Feliz
daquele que no livro da alma não tem páginas escritas...
Agora
devo partir. Vejo que estás recuperado, a trilha o levará até a
vila. Queres pensar as feridas do coração? Aqui é o lugar certo.
Estamos em terras do futuro, mas semeadas com oásis do passado
construídos com engenho e
arte por mãos portuguesas
e que a todos acolhe. Aqui se vive em paz, não correrás riscos de
perder um olho em batalha, meu amigo!
-É,
notei sua perda, sinto muito, foi na Guiné? Angola?
A
notável figura humana aprumou-se, sorriu, e já desaparecendo por
entre o arvoredo gritou com orgulho:
-Ceuta!
Contra os mouros!
FIM
Luís Vaz de Camões (Lisboa
[?] 1524 —
Lisboa, 10 de junho de 1579 ou 1580) é considerado uma das maiores
figuras da literatura lusófona e um dos grandes poetas do Ocidente.
Pouco
se sabe com certeza sobre a sua vida. Aparentemente nasceu em Lisboa,
de uma família da pequena nobreza. Sobre a sua infância tudo é
conjetura mas, ainda jovem, terá recebido uma sólida educação nos
moldes clássicos, dominando o latim e conhecendo a literatura e a
história antigas e modernas. Pode ter estudado na Universidade de
Coimbra, mas a sua passagem pela escola não é documentada.
Frequentou a corte de D. João III, iniciou a sua carreira como poeta
lírico e envolveu-se, como narra a tradição, em amores com damas
da nobreza e possivelmente plebeias, além de levar uma vida boémia
e turbulenta. Diz-se que, por conta de um amor frustrado,
autoexilou-se em África, alistado como militar, onde perdeu um olho
em batalha (Ceuta). Voltando a Portugal, feriu um servo do Paço e
foi preso. Perdoado, partiu para o Oriente. Passando lá vários
anos, enfrentou uma série de adversidades, foi preso várias vezes,
combateu ao lado das forças portuguesas e escreveu a sua obra mais
conhecida, a epopeia nacionalista Os Lusíadas. Teria sido nomeado
para a função de Provedor-mor dos Defuntos e Ausentes para Macau em
1562, desempenhando-a de facto de 1563 até 1564 ou 1565. Nesta
época, Macau era um entreposto comercial ainda em formação, sendo
um lugar quase deserto. Diz a tradição que ali teria escrito parte
d’Os Lusíadas numa gruta, que mais tarde recebeu o seu nome.
(fonte:Wikipédia)