quarta-feira, 27 de abril de 2011

Angola:o dia em que uma booby trap matou-me sem glória alguma...

A booby trap ou armadilha para tolos,como é conhecida sempre foi muito usada e aperfeiçoada na Segunda Guerra Mundial pelos alemães e também pelo vietcong,embora com menos sofisticação. Um objeto qualquer abandonado podia ser uma armadilha fatal para quem o descobrisse;um relógio,uma arma,um livro...Principalmente na área urbana,sempre consegue pegar desprevenido o soldado curioso,descuidado. No treinamento que recebi na Rhodesia para operações externas não convencionais,trabalhávamos com explosivo plástico e material simples,facilmente encontrado nas cidades,como prendedores de roupa e ratoeiras comuns,de mola. Com apenas esses dois elementos uma infinidade de armadilhas podiam ser feitas,que explodiam sob uma pressão qualquer,um puxar de gaveta,uma retirada de objeto,a abertura de uma caixa,um balanço,um giro,etc. Também havia métodos mais sofisticados,com temporizadores elétricos,baterias,mercúrio,tubos e esferas de aço. Acredito que uma booby trap,confeccionada com um tubo de vidro e esfera foi a que me matou em Angola,no ano de 1975... 
 
O fato é muito interessante pelo que envolve de reação medular,reações em que alguma parte do cérebro assume o comando do corpo de maneira imediata,precisa,ditatorial e nos dirige enquanto permanecemos desligados da realidade. Tudo o que aconteceu ficou bloqueado em minha memória e fui recordá-lo anos depois,me surpreendendo por não ter tomado nenhuma providência para destruir o artefato explosivo ou alertado os companheiros para protegê-los. Mesmo quando descrevi no livro “A opção pela espada”a Batalha de Kifangondo,onde tudo ocorreu,este detalhe ficou de fora. Talvez agora,com a Internet,possa aparecer o antigo inimigo, autor do artefato que requereu certo conhecimento e treinamento para sua confecção e possamos trocar informações a respeito. Darei detalhes do local para que os envolvidos possam identificar-se com a ação.

Em missão de exploração por onde nossas tropas avançariam,atravessei a ponte do Panguila,a ponte de concreto em arco,sentido Caxito-Luanda e imediatamente dobrei à direita,protegido pelas primeiras edificações de alvenaria,à beira do asfalto. Cerca de 100 metros à direita destas,em direção ao oceano,havia uma cabana nativa isolada,feita de barro e coberta de palha,dominando todo o local. Batendo o terreno,corri curvado até ela com a G-3 em posição e a invadi,estava vazia. Ao sair,deparei-me com um chapéu de palha,grande,dependurado na parede,à direita da porta,à altura de meu rosto. Pensando em palhaçadas,inadvertidamente,como um recruta inexperiente,resolvi pegá-lo para colocar na cabeça,voltando com ele para a posição onde deixara o grupo abrigado...Preparado inconscientemente para o peso mínimo de um chapéu de palha,assim que o retirei do prego que o mantinha na parede recebi o choque,o gelo que me paralisou, de um peso de mais ou menos 2 quilos! Dois quilos de explosivos.Senti-me morto,aos 26 anos,estraçalhado por uma explosão tola,sem glória...Nesse instante algo me comandou e agi por reflexo,o tempo parou. Fui girando o chapéu na horizontal,na posição que se encontrava na parede,sem curvá-lo e lentamente a parte interna foi surgindo a um palmo de minha face. Uma lâmina de lata,tipo cobertura metálica de alumínio,cinza escuro,tapava toda a copa do chapéu,repleto de explosivo plástico,suponho eu. Uns dois quilos...Depois inverti o giro e delicadamente coloquei-o com precisão dependurado no prego,novamente. A partir dai tudo foi apagado,retornei normalmente,reuni-me ao grupo e a missão continuou,sem que eu lhes avisasse ou depois,já no ruido da batalha,destruisse com um tiro o perigoso artefato!

Somente passado vários anos me recordei desse episódio do qual sobrevivi provavelmente graças ao treinamento e conhecimentos armazenados no cérebro,que deram o alarme antes da consciência normal e comandaram minhas ações,não tendo nos momentos seguintes repassado o acontecimento à memória imediata,também ocupada pela intensidade do combate que se desenvolvia. Acredito que por não ter mudado o chapéu da posição original e o detonador não ter sido acionado,o mesmo deveria ser o de deslocamento de uma esfera de aço,colocado no interior de um tubo de vidro,tipo tubo de ensaio,fechado por uma rolha onde entrariam dois fios vindo de um dos pólos de uma pilha. Por milímetros ou graus de inclinação,a esfera não deslizou fechando o circuito,a armadilha não explodiu e hoje vocês podem se distrair com esse texto...


Brasileiros,levando o Deus cristão aos solavancos no andor do desespero...

Ao escrever sobre a pesquisa realizada pela Ipsos acerca da crença em um ser superior, usei a frase que dá título a esse texto. E ela permaneceu em minha mente durante todo o dia, porque exprimia sozinha, toda uma desgraça absoluta, me passava uma visão forte, colorida, latino americana de crença cega e inútil, levada pelo desespero da pobreza,da dor, do esquecimento, de abandono pelo poder público... 

andor do desespero é a Kombi velha,sem bancos atrás, com uma grávida agachada,segura pelo marido a caminho de algum hospital sujo,lotado e mal equipado... É a camionete 1971 sem placas, com carroceria de madeira e algumas tábuas servindo de bancos, na estrada de terra da periferia, levando crianças – também aos solavancos – para a escola sem carteiras, quente, com a professorinha cansada e assustada em sua epopeia diária para lá chegar... São trens de subúrbio sacolejando de madrugada, primeira etapa de mais duas ou três em coletivos, espremidos rumo ao trabalho esgotante e mal remunerado... É o ônibus da romaria com pneus carecas e poltronas remendadas com arame e que vai tombar na primeira curva, quando forem, apesar dos pesares, louvar o Deus cristão cujo peso durante todo o tempo em sua desgraça e luta pela sobrevivência, levam às costas, aos solavancos que o caminho provoca, no andor do desespero... 

Deus ou deuses, cristão ou não, foram criados pelo próprio homem para servir de refúgio às suas incertezas, um ancoradouro virtual, impalpável, mas onipresente como último lance nesta travessia forçada em mar revolto, escuro, ignoto que é a vida, resultante de uma ligação aleatória de moléculas que nos dá uma inútil, confusa e dolorosa consciência transitória. 

O Deus virtual dito onipotente e onipresente sobrepõe-se, aos olhos da massa, ao poder público, que disfarça e olha para outro lado quando o andor do desespero, aos solavancos passa; que cobrem d'Ele as desgraças... 

Os Reis e Sacerdotes de outrora hoje denominam-se políticos e clero, cobertos pelas próprias bençãos divinas e que delas muito bem aproveitam. E o povo continua passando reto, direto por eles, em romaria, quando deveriam não pedir nem orar, mas exigir dos verdadeiros deuses responsáveis pela tragédia do dia a dia e que detém poder e têm o dever de serem onipresentes, lançando aos náufragos que nadam na direção do Nada, a boia da dignidade e qualidade de vida, pagas antecipadamente pelos impostos, eufemismo usado para designar o extorsivo aluguel cobrado para morarmos em nossa própria casa. Deus, instalado nas mentes, não precisa ser carregado; olhem para cima com olhos despidos de crença e descobrirão o quê realmente pesa neste andor carregado, quem nele se aboleta confortavelmente. Lancem-os ao solo e usem os paus do andor -e não orações- para cobrar os serviços pagos e não entregues.