A BATALHA DE QUIFANGONDO




Do livro "A opção pela espada", de Pedro Marangoni

No dia 6 de novembro sob o comando do capitão Valdemar, quatro grupos de combate saíram em caminhões para o Morro da Cal. Teriam a missão de tomar a ponte do Panguila, não conseguida pelos zairenses e isto teria que ser de surpresa, pois o inimigo poderia explodi-la. A Engenharia só possuía material para a construção de uma ponte e ainda havia a de Quifangondo, mais à frente; daí a necessidade de capturar pelo menos uma intacta.

Infiltrando-se durante a noite o grupo acabou por tomar a ponte, quase amanhecendo, após uma demora inexplicada e várias discussões pelo rádio com o major, junto do qual acompanhávamos o desenrolar da missão, já no Morro da Cal, aguardando seu final para que pudéssemos avançar.

Com o aparecimento do dia toda a infantaria começa a descer para a baixada da lagoa, para quê não sei. Concentram-se centenas de soldados em um mortífero caldeirão bem ao alcance do fogo inimigo, que entrincheirado no alto do morro do Quifangondo domina visualmente toda a área. Do Morro da Cal também temos a mesma perspectiva, mas essa só é boa para a defesa e nós temos que atacar.

No jeep de Staff desço até uns 200 metros da ponte, no local de um antigo britador, creio eu, que nos fornece um razoável abrigo. Ali se estabelece o próprio comando da ofensiva, com o major A. Cardoso, o coronel Santos e Castro, o coronel Mamina, do exército zairense e comandantes do ELNA.

O inimigo, após gentilmente deixar que nos concentrássemos, deu início ao bombardeio de mísseis, num tiro fácil e preciso, pontilhando de baixas as nossas fileiras que aguardavam o fogo do canhão 130 mm, que deveria destruir as defesas do inimigo para que avançássemos com alguma chance.

A Panhard 90 do tenente Paes toma posição ao lado da ponte, caso os blindados inimigos avancem. Uns 20 metros atrás, deixando o abrigo, me instalo debaixo de uma árvore ao lado do jeep do major, onde também estão o major André e dois de seus homens; o terceiro, “o Velho” ficara na retaguarda, preso a uma terrível cólica renal (verdadeira).

Assim estava o front principal ao norte de Angola: na vanguarda, oficiais e comandantes, todos brancos, de arma em punho, enquanto que a tropa nativa enterrava-se no barro, centenas de metros atrás…

Nosso moral é bom, fazemos piadas o tempo todo, enquanto a chuva de mísseis continua. Com os binóculos podemos ver a saída dos “122” russos, contamos os segundos, 18 aproximadamente e eles caem com seu ruído cadenciado, em torno da ponte onde nos encontramos. O asfalto vai aos poucos se cobrindo de folhas, galhos e terra. Já estamos preocupados, avançamos ou não? Por que o canhão 130 não atira? No horário previsto, apenas escutamos uma detonação, mas em vão mantivemo-nos em silêncio, para escutar o assovio característico do projétil passando sobre nós.

O que acaba vindo é uma informação urgente e péssima.

Apesar de toda a pompa dos oficiais zairenses, outro fracasso… À ordem de fogo, explodiram a granada, a peça e quem a acionara! Em segundos o canhão se autodestruíra, o oficial de artilharia morrera e o imprescindível fogo pesado falhou.

E agora? O bom senso mandava que nos retirássemos enquanto ainda controlávamos as nossas assustadas tropas. Sentia-me novamente como pato num stand de tiro, só que desta vez com quase todo o ELNA comigo – poderia ser o fim do exército de Holden!

Estamos pregados ao solo, os órgãos de Stalin enviam suas bolas de fogo por toda a lagoa, espalhando lama e detritos, além de estilhaços que chegam a pesar vários quilos. Quando ouvimos seu ruído é bom sinal, pelo menos para nós, pois quer dizer que está passando e cairá atrás; deitados na vanguarda, víamos os soldados serem retalhados às nossas costas.

Lá vem mais para nós!

Esse é nosso, cuidado!

Colo o rosto no chão, deste não escapo, protejo a nuca com a mão. A explosão, o sopro, o calor, a chuva de lascas de concreto e asfalto. Mexo-me. Estou bem! Os cubanos estão bons de pontaria, foi a duas dezenas de metros! Creio que fui salvo pela borda saliente do asfalto, mas um dos homens de André geme debaixo do jeep. Sentiu algo na sua perna, nem olha para ela, ainda estará lá? Grito para ele que estou vendo o ferimento,“não é nada”!

O estilhaço felizmente só atingira a carne e é removido para a retaguarda, enquanto que continuamos a espera de uma decisão e que a sorte nos proteja.

Que ruído é este?

Olhamos em nossa volta e nada! Um roncar parecido com granadas de morteiros…

O major André põe-se de pé num salto e sacode o “Gordo”, o outro membro da sua equipe:

Acorda, f.d.p.!

De tanto esperar o descontraído guerreiro dormira em cima do jeep, enquanto à sua volta estilhaços cortavam os ares em todas as direções e os feridos caiam às dúzias! Ressonava como um justo… Gargalhada geral; só rindo mesmo, pois a situação era negra.

Os morteiros 120 tentam alguma coisa, mas não alcançam as defesas inimigas e as granadas são apenas 42; as restantes, milhares, estão guardadas na fazenda Tentativa! Coisas da Logística zairense…

O ar vai se tornando escuro de fumaça e o “cheiro da morte”, sangue e pólvora, começa a penetrar pelas narinas.

A ponte do Panguila, de concreto, possuía dois altos arcos paralelos com cerca de um metro de largura. Como não tínhamos visão do que se passava logo à nossa frente e o inimigo podia avançar subitamente sobre nós, Remédios não titubeou e numa só corrida trepa até o ápice do arco, completamente a descoberto e em vez de observar com cuidado, se diverte em fazer graças para nós e gestos obscenos ao inimigo! A ideia é boa, mas temos que aproveitá-la melhor, vou até lá em cima também e lhe entrego um binóculo.

Os zairenses e soldados do ELNA ameaçam derrubar-nos a tiro se não descermos. Creem que estamos atraindo o fogo do inimigo, como se este não soubesse que lá estávamos! Acabamos por retirarmo-nos, não sem antes invertermos a direção dos gestos obscenos…

O municiador da Panhard 90, o mesmo que eu substituíra na tomada das Mabubas, adoece de medo definitivamente. Remédios salta para dentro do blindado a pedido de Paes, que é chamado ao QG improvisado. Daí a pouco o irrequieto companheiro assome pela escotilha do carro e grita, chamando-me com urgência. Entro no posto do atirador do canhão 90 mm pela primeira vez e Remédios aponta o visor de tiro:

Olhe, há um Land Rover inimigo se movendo ao nosso alcance!

Não consigo enquadrá-lo direito, está em movimento, mas o português não quer perder a oportunidade e abrimos fogo contra o veículo. Nem sabemos se acertamos ou não, mas demos o primeiro tiro direto do dia contra o inimigo!

O tenente Paes fora chamado porque uma decisão finalmente havia sido tomada: as Panhards avançariam mesmo com as defesas do adversário intactas! E a seguir, caminhões com infantaria…

Ordens absurdas, devidas unicamente à luta nos bastidores para se conseguirem maiores influências com o Presidente: “os zairenses se sacrificam pelo FNLA, ou então, os comandos não recuarão diante de nada”, etc. Tudo isso, quando éramos voluntários para sermos lançados de paraquedas,à noite, sobre Quifangondo ou Luanda, única maneira, a meu ver, de rompermos a linha inimiga. Mas parece que ganhar a guerra não era tudo, o importante era a partilha de poderes...

Só agora me dou conta que a manhã se passara, estávamos no meio da tarde, sem comer e sem beber e tudo acontecera como se fosse em meia hora! Havíamos perdido a conta no 114º míssil e este intenso bombardeio nos mantivera ocupados, corpo e mente, de uma maneira incrível.

As Panhards zairenses sairão na frente, seguidas dos comandos; por último, dois caminhões Mercedes com soldados do Zaire.

Vejo-os passarem por mim e cruzando a ponte desapareceram na primeira curva, a trezentos metros de nós. Entram na reta para a segunda ponte mas não chegam até lá. Uma fantástica fuzilaria de armas pesadas os recebe, com tal intensidade que parecem rajadas de armas automáticas! RPG-7, canhões anticarro, metralhadoras pesadas, tudo é usado contra a frágil coluna atacante. A infantaria se joga dos caminhões para as valas da estrada, sofrendo baixas. As Panhards da vanguarda, sem sequer dar um tiro, manobram freneticamente para voltar, cortando a passagem na estreita via cercada de pântanos. Como o comando do comboio é zairense, o tenente Paes não tem alternativa que ordenar aos seus carros o recuo. A maioria dos pneus está em baixo, perfurados; os zairenses atropelam-se uns aos outros para fugir, em desordem. Os primeiros blindados a surgirem de volta, mal haviam feito a curva manobraram à ré, com desculpas de que traziam feridos graves; estes, deitados sobre os para-lamas, logo saltavam e saíam andando uma vez em segurança…

Chegam nossas Panhards; a 90 mm para ao meu lado. As escotilhas se abrem e delas emergem Paes e Remédios, com a cara e ombros salpicados de sangue – o fogo fora tão intenso que minúsculos estilhaços penetraram pelos orifícios das escotilhas e visores!

Ao menos conseguiram informações complementares das defesas inimigas: a primeira linha, composta de RPG-7, entrincheirava-se atrás de um enorme tubo de canalização d’água que passava pela base do morro. Na reta da segunda ponte, um perigo maior: quem atacasse ficaria frente a frente com canhões anticarro, capazes de pulverizar um veículo como a Panhard.

Mas o relatório foi interrompido, a tensão, principalmente dos africanos era grande e aumentou com a volta precipitada das autometralhadoras e soldados feridos. Depois, a “gota d’água”: o inimigo, orientado por bons profissionais, fez exatamente o que devia – com todas as bocas disponíveis cobriram a baixada do Panguila de fogo e antiaéreas, provavelmente avançadas, ceifavam tudo e todos. As árvores incendiavam-se, os milhares de projéteis faziam-nas farfalharem agitadas e aliadas ao fumo que invadia as posições, o retumbar contínuo, o clarão das explosões e os gritos de dor e agonia, davam um ar de apocalipse, de algo terrível, mas fantástico. Eu estava no centro de um furacão de fogo mas era como se toda aquela energia me desse força também. Eu sentia como o todo, não como parte; eu era os mortos, os feridos, os agonizantes; eu era a raiva do inimigo; eu era a velocidade dos projéteis, eu era imortal, vivia ali, em minutos, mil anos...

O pânico na tropa nativa era de se esperar.

Largando armas e chefes, os africanos agarravam-se aos caminhões e blindados, muitos fora de si e as mortes se sucediam; aos feridos, ninguém acudia. Quem caísse na estrada tinha o corpo esmagado pelos veículos, cujos condutores não podiam se desviar, mergulhados em uma multidão enlouquecida, nem ao menos poderiam diminuir a marcha ou seriam fuzilados pelos soldados que só pensavam em sair dali. Espero a ordem formal de retirada, que é dada. A VTT dos comandos passa por mim como um verdadeiro cacho humano, apinhado de gente. Paiva, seu chefe, grita com histeria para que não suba mais ninguém. Enoja-me aquela pressa em fugir, me preocupo com a ponte, pois julgo identificar os sons dos canhões dos blindados anfíbios do inimigo. Estarão vindo atrás de nós?

Permaneço atento, vendo todos se afastarem no caminho coberto de mortos e armas ligeiras. Armo um lança-foguetes anticarro e posiciono-me de pé, no centro da estrada. Nossa posição esvazia-se.

O major André me chama:

Pedro, vamos embora, tem um lugar aqui para ti, não adianta ficar!

Ainda hesito de subir para o jeep, é a vergonha de abandonar a posição, mas o que podemos fazer se não temos força de resposta? Tomo meu lugar, mas quando vamos sair, S.,um ex paraquedista português, cai ao lado de nós, gritando estar ferido. Salto, agarro-lhe e o coloco em meu lugar. Puxam-me para cima de qualquer maneira e me seguro como posso, sentado no para-lamas. Entramos no asfalto, em meio a uma confusão incrível; uma Mercedes com os pneus arrebentados bloqueia a passagem e engarrafa os veículos fugitivos. Alguém pergunta ao S., deitado de través com a barriga para baixo e gemendo:

Onde é que está o seu ferimento? Não vejo nada!

Ele aponta para as costas, evitando se mexer – levara uma pedrada lançada por uma explosão e ao sentir o impacto na coluna, seus nervos o “congelaram”!

Não tem nada rapaz, pode parar de gemer!

Satisfeito, sentou-se, já sem “dor”…

O desespero dos soldados está estampado nos seus semblantes, dependuram-se em tudo que move. Chamam-me com um grito entrecortado, quase animal; olho para cima da VTT que está ao nosso lado – é um comando, com um buraco no lugar da glote e o sangue jorra abundantemente. Penso em colocá-lo no jeep, mas a VTT se desvencilha primeiro e segue mais rápida que nós. Com o pequeno Toyota conseguimos alcançar o Morro da Cal velozmente e no topo da estrada, com uma G-3 na mão, seguindo ordens do major, forço os motoristas a entrarem com seus veículos numa espécie de abrigo, onde outrora se retirava terra. Caso contrário, só pararão em Ambriz, tal é a pressa em deixar a frente de combate. Um condutor civil, de meia idade chora, tem medo de morrer, fala da mulher e dos filhos, mas não posso deixá-lo partir, seu enorme caminhão nos é precioso. A VTT vem a toda velocidade, sem pensar em parar rumo à retaguarda. Entro em sua frente e apesar dos protestos a obrigo a entrar no “curral”. Enquanto me distraio nisso, o caminhão civil foge em disparada com seu lacrimejante motorista! Boa sorte, homem, mas crie juízo e volte para Portugal! Muitos soldados se metem pelo mato, abandonando as Companhias, achando que a guerra acabou de vez…

Dali do alto só se vê uma nuvem negra na baixada onde estávamos. Terrível, sem dúvida uma sensação indescritível, mas que tem algo de emocionante naqueles minutos entre a vida e a morte, oscilando, o barulho atordoante. Como se cavalgássemos lado a lado com as Valquírias, ao som de “O anel de Nibelungo” de Wagner…

Vamos nos organizando da defesa do Morro da Cal e o inferno vai passando à simples recordação para a tropa que restou, mais confiável, pois auto selecionara-se. Os outros estão metidos no mato, tremendo até agora. O inimigo não aproveitara a grande chance de nos perseguir durante o pânico, avançaria até Caxito, no mínimo. Já que nos permitiu, voltaremos a tentar!

Dormi pesado naquela noite devido ao desgaste sofrido, mas sem deixar a linha mais avançada. No dia seguinte, a Panhard 90 e uma 60, além de mim como carona, desceram novamente até próximo da ponte, para rebocar a Mercedes que lá ficara. Meu objetivo era outro, os mamoeiros de uma granja afastada uns 100 metros da estrada. Valia a pena arriscar o pescoço por uma fruta, já que da ração de origem sul-africana que estávamos recebendo, meu estômago só aceitava o café com leite (em pó) e os abricots secos e eu perdia peso acentuadamente.

No capinzal da granja abandonada ainda haviam alguns mortos de investidas anteriores, em putrefação; levavam carregadores de Simonov, fuzil russo que não usávamos. Eram cadáveres das FAPLA, apodrecendo ao lado dos do ELNA...


Estamos no dia 8 de novembro, faltam três dias para a independência.

Camuflado na vegetação, com o peito encostado na terra, observava o Morro de Quifangondo através de binóculos cobertos de papelão para evitar reflexos que me denunciassem. Em colunas, caminhões carregados de terra iam e vinham, tratores funcionavam ininterruptamente. Construíam mais abrigos, aproveitando-se das lições colhidas no dia anterior. Se estava difícil, agora seria impossível tomar aquele morro com um assalto frontal diurno, através de um só estreito e desabrigado caminho! Além da ideia de lançar-nos de paraquedas sobre as posições inimigas, à noite, também concordávamos em sermos conduzidos em aviões Hércules C-130 da Força Aérea Zairense, até o próprio aeroporto de Luanda e atacar o inimigo em seu coração. Mas não, a ideia fixa era que nos suicidássemos na maldita lagoa. Iríamos em frente.

Na manhã seguinte, 9, uma nova esperança surgiu: chega às nossas linhas três caminhões rebocando poderosos obuses 140 e em suas carrocerias, cerca de 1200 granadas! A guarnição, 20 homens brancos que falam “africânder” entre si, desembarcados durante a madrugada de aviões C-130 no aeroporto de Ambriz.

Trata-se de uma ajuda do Exército Sul-africano, já que a artilharia do Zaire não tinha competência para um tiro eficaz. Mesmo assim os zairenses instalaram ao lado outro canhão 130, para ficar com uma fatia do mérito, embora mal soubessem realizar um cálculo de tiro…

A montagem da bateria é rápida, sob ordens curtas e precisas. Um “show” à parte de disciplina e eficácia, enquanto os zairenses tropeçam entre si. Mas estudada as defesas de Quifangondo, o próprio oficial sul-africano afirmou serem necessários muito mais que três obuses para rompê-las. Outro senão, grave: o abrigo onde estávamos, o “curral” anteriormente mencionado e que servia de proteção às viaturas e bateria, era um pico geodésico, inclusive lá ainda existia uma torre de madeira a marcá-lo. Isso queria dizer que num mapa, o ponto estava representado com exatidão, bastando ao inimigo dois ou três cálculos simples para nos alvejar, na “mosca”…

O novo ataque seria amanhã, 10, véspera da independência. Para descansar tranquilo fui dormir embaixo de uma Panhard; esperança vã, pois um terrível temporal caiu sobre nós, inundando tudo e prosseguindo noite afora, sem diminuir de intensidade. Saltávamos de um lugar para outro à procura de onde pudéssemos dormir, mas isto era impossível. Rajadas de vento, trovoada, um aguaceiro que jamais vira em Angola. Enlameado, acabei alta madrugada, embaixo de um precário teto construído com folhas metálicas encostada num barranco, encolhido com todo o encharcado staff.

Quando afinal fecho os olhos de cansaço e sono, me sacodem pelo ombro. Um vulto coberto com um pedaço de lona me estende o braço e em sua mão uma caneca de café fumegante! Simplesmente fantástico alguém ter conseguido esta verdadeira façanha debaixo da tempestade. Obviamente tratava-se do incrível Remédios, que descobrira uma protegida fogueira nas posições zairenses, bastante afastada e “infiltrando-se” com suas conversas, acabara por ganhar o café, que para mim teve o mesmo valor do que passara Kirkop através das grades, na fria prisão de Córsega. Amigos fiéis e dedicados, impossíveis de se conseguir nos egoístas e competitivos “tempos de paz”.

Consegui dormir um pouco. Logo com o aproximar do dia a agitação dos soldados, aproveitando o fim da chuva, me acordou. Torciam seus uniformes, dependurando-os sobre os veículos e pequenas fogueiras. Os sul-africanos atarefam-se como formigas, em silêncio. Tomam posição ao lado da peça, como num exercício e o oficial dá ordem de fogo. Num clarão de relâmpago, o potente obus 140 rugiu, cuspindo fogo e assustando os desprevenidos. Assoviando, a granada afastou-se de nós e só um abafado estrondo conseguimos ouvir, era em Luanda! Segundo o plano de tiro, primeiro se bombardearia alvos estratégicos da capital incluindo o aeroporto, por onde uma ponte aérea despejava soldados cubanos e armamentos. Depois foi a vez de Quifangondo, tentando se destruir os abrigos; uma nuvem de fumo erguia-se de todos os pontos do morro, num tiro preciso e seletivo.

Às 7:00h chegou a vez dos blindados descerem a Lagoa, no mesmo avanço realizado na tentativa anterior. Mudou-se apenas a ordem: para não haver retiradas precipitadas, as Panhards dos comandos iriam à frente. Seguiriam-nas as restantes, mais caminhões com tropas zairenses. À medida que fossem detectados focos de resistência aos blindados, os obuses iriam fazendo seu tiro de proteção. Numa posição abrigada, aguardo minha hora de seguir, novamente no jeep do staff. Observo a coluna blindada passando pela granja, chegando à ponte de Panguila e sem esperar sou surpreendido por explosões de mísseis, caindo às minhas costas! Olhamos apreensivos para os obuses e as centenas de granadas ali empilhadas, exatamente no local atingido, de onde sobe o fumo de duas séries de quatro mísseis cada, num golpe inesperado que causa baixas entre os sul-africanos.

Como, se a distância entre as linhas de frente era maior que o alcance dos 122 russos? Com os binóculos, momentos antes, havíamos notado reflexos se movendo ao redor da lagoa; simplesmente contornaram o pântano e nos atingiram lateralmente, com os “órgãos de Stalin” montados em caminhões, recuando em seguida, antes que revidássemos. Brilhante!

O golpe, embora não tenha causado grandes perdas e os obuses continuassem atirando, foi de grande efeito moral, como se pode imaginar. Mal refeitos da desagradável surpresa, assistimos ao compacto fogo com que recebiam nossos carros depois da primeira ponte. Na linha do tubo d’água, um só clarão de ponta a ponta denunciava a saída dos RPG, mas sem que contudo fossem alvejados pelos sul-africanos que insistiam em alvos mais acima, sem grande valor imediato no combate que se travava na estrada. Porventura a ajuda era uma farsa e não interessava à África do Sul nossa entrada em Luanda? Outra luta pela partilha?

O reduto inimigo, reforçado desde o dia 7, concentrava todas suas armas na coluna mas desta vez os blindados da vanguarda não recuavam, seguiam em frente e já em distância de tiro abriam fogo com o canhão 90,morteiros 60 e metralhadoras. Encabeçava o avanço uma Panhard 60 chefiada por Lopes. Enfrentou a impossível barreira, chegou a menos de 100 metros da segunda ponte – Quifangondo – mas não a conseguiu transpor. Um violento choque os jogou para o lado: atingidos!

O estampido, a pancada, o forte calor que se fez foram momentâneos, estavam vivos e o motor ainda funcionava no veículo inclinado, cuja parte traseira direita fora volatilizada. O condutor conseguiu manobrar o veículo, cuja parte destroçada, agarrando-se ao asfalto, facilitava o giro. Lentamente, foram se arrastando pela pista, em direção à retaguarda. Cruzaram conosco e Lopes me acena, indicando a traseira de seu veículo, vão tentar colocar uma roda e voltar ao combate.

É a nossa vez, vamos descer!-avisa o major.

Saímos à frente, seguem-nos duas Mercedes; por nós cruzam em alta velocidade as Panhards zairenses, intactas, recuando. “Para remuniciar” -gritam- explicando-se. Haviam mudado de tática, os covardes: após cruzarem a ponte, descarregaram a esmo todas as suas armas em ritmo alucinante, embora o inimigo ainda não estivesse ao alcance e voltaram, pois a munição se esgotara em “plena batalha”…Nossos blindados avançaram sós e deviam estar lutando pela segunda ponte no momento. Tínhamos que ajudá-los.

Em verdade, já não existiam. Dentro da Panhard de Lopes viera um quarto tripulante espremido entre as ferragens, ensanguentado: Simões “pequeno”, o condutor do tenente Paes. A Panhard 90 sofrera um impacto direto que a destroçara após ter avançado o máximo possível, fazendo certeiro fogo e destruindo vários ninhos de metralhadoras e canhões. Agora, incendiava-se; lá dentro Paes e Remédios provavelmente mortos…

Simões, cujo assento de condutor se situava aos pés dos outros dois tripulantes, tivera as costas retalhadas por centenas de estilhaços, o que levava a crer que toda a cabine atrás explodira. Nem toda “arte e engenho” de meu amigo Remédios o safaria desta. O único que se movera fora o condutor, saindo da carcaça blindada aos tombos e correndo direto à Panhard 60 de Lopes, já atingida e recuando com dificuldade. Puxaram-no para dentro e enrodilhado como podia na exígua cabina, conseguiu ser salvo. Não viram a outra P.60 dos comandos e os zairenses haviam desaparecido. Estavam sós na estrada.

A Panhard desaparecida, comandada por Oliveira, um ex-flecha, havia caído no pântano devido aos tiros que recebera e como se encontravam ilesos trataram de abandoná-la o quanto antes. Mas somente o municiador Azevedo conseguira retornar, agarrando-se a um carro zairense que fugia, escapando dependurado entre os para-lamas. Após a ponte só ficaram nossos blindados destruídos, a infantaria zairense com metade de seus homens mortos ou feridos e os sobreviventes imobilizados pelo fogo.

Saltamos debaixo de forte bombardeio antes da ponte. Queremos avançar rápido, ainda não sabemos do que aconteceu lá na frente e a única preocupação é dar proteção às duas Panhards que não voltaram e acreditamos estarem lutando. Os homens titubeiam, uma verdadeira barreira de mísseis cai à nossa frente. Mas há pequenos intervalos e procuro aproveitá-los; primeiramente tentamos passar por baixo da ponte. Um pântano coberto de folhagens nos espera e nosso avanço é detectado. Chovem granadas e “122”, pelo som, acredito que existam morteiros 81 nos alvejando. O inimigo deve ter avançado pela direita, numa trilha e essas granadas fazem mais vítimas que os mísseis; vamos pouco a pouco sendo reduzidos em número. Agachado no aterro na base da ponte, espero que um comando passe minhas observações pelo rádio, não dará para atravessar. Os estilhaços voam à minha volta, mas o atingido é o operador que enviava a mensagem, praticamente protegido atrás de mim! Retiro-lhe o transmissor e comunico a informação. Depois subo pelo barranco e volto ao ponto de partida, debaixo de uma árvore, onde agora há um buraco suficiente para dois homens; dentro, como um rato, o capitão F., que não para de cavar com uma faca.

Que é isso, capitão?!

É a força do desespero, Pedro! -e ajeita um pedaço de tábua às suas costas ao mesmo tempo que arregala os olhos para os dois metros de antena que levo no rádio!

Pelo amor de Deus, abaixe essa antena, vamos nos “denunciar”!

Avisto Alves Cardoso e lhe grito que vou passar por cima da ponte mesmo, será mais rápido. Temos 18 segundos entre cada explosão e eu e Nelson resolvemos dar o exemplo, senão ninguém sairá do lugar.

Já!

Ainda caem terra e os galhos das últimas detonações e correndo entramos pelo tabuleiro de concreto, que parece mais longo ainda.

Não vai dar!

No meio da ponte jogamo-nos ao chão, apostando na sorte. Quatro mísseis à nossa frente nos fazem sacudir. Pulamos do piso empoeirado e nova arrancada, desta feita até o fim. Uma tentadora vala oferece abrigo, mas é justamente onde sempre caem os mísseis da barragem; sem parar, arriscamos mais uma dezena de metros já sem fôlego.

- “Pro” chão!

Pego no descampado, atiro-me de braços estendidos, o rosto raspa na terra, a G-3 escapa-me das mãos, mas os fragmentos passam por cima, ainda não era nosso dia ou hora. Quase sorrindo, chegamos aos relativamente protetores escombros da primeira casa que ali havia. A ponte ficara para trás, mas apenas três ou quatro homens vinham tentando nos seguir. Nelson se instala numa espécie de trincheira, aberta para construção de alguns alicerces, interrompido pela guerra. Com a movimentação das poucas boinas vermelhas avançando o inimigo dobra seu fogo sobre nós, já ao alcance de suas antiaéreas e morteiro.

Rastejando como uma cobra – não me restava alternativa – vou ganhando terreno pouco a pouco. Impossível correr ou se pôr de pé. Tudo é despedaçado, saltam lascas de reboco e barro, telhas e pedaços de madeira. Os vidros partidos abrem cortes em minhas mãos, mas nem os sinto. A “droga” combate é poderosa, me empurra para a frente, quero avançar. Por um buraco na parede entro num quarto, passo por cima do que era a cama, saio por outra brecha e já no quintal me lanço numa caixa de cimento, o comedor para os porcos, no preciso instante que uma granada arrebentava com o resto do teto.

Ergo a cabeça e fico frente a frente com dois assustados olhos numa face negra, a alguns palmos de distância. Instintivamente meu dedo indicador se curva sobre o gatilho da G-3 mas não disparo. É aliado, ou melhor, o que resta do aliado – seu corpo é só uma pasta de sangue.

Atingido várias vezes não consegue mais se mover, viera se arrastando desde a primeira curva, onde saltara do caminhão, por uma providencial vala cavada pelas chuvas, paralela à estrada. Olha-me suplicando auxílio e não há como seguir em frente sem ajudá-lo. Agarro seus braços, o zairense grita e se contorce de dor, procuro alguma parte por onde possa segurá-lo, mas o homem está simplesmente feito uma peneira. Pego-lhe no colo como um bebê e uns vinte metros depois encontro o capitão Valdemar, que me ajuda. Deixamos o ferido no buraco do alicerce, de onde três comandos se encarregarão de levá-lo. Olho para a ponte, o major André a ultrapassara e estava de pé, justamente no tal lugar sempre batido pelo fogo de barragem.

Sai daí,homem!

Já que ninguém avançara, ele se sentiu no dever moral de nos apoiar, embora não fosse sua obrigação. Conta-nos que o major A. Cardoso fora ferido na virilha e evacuado. Volto a avançar. Ultrapasso as casas, rastejo por um terreno limpo e acabo imobilizado perto da curva, onde já avisto o caminhão abandonado. A intensidade do fogo é muito grande, mal posso me mover, as antiaéreas assoviam sobre mim. Valdemar chega à uns trinta metros atrás, lhe grito que se deite e os projéteis o convencem rapidamente. À minha direita surgem zairenses bastante feridos, recuando numa trilha de sangue. O Adjudant Falanga, um dos poucos com quem conversava amigavelmente, aparece com a orelha esquerda e o couro cabeludo esfacelados, me reconhece, ri, mas diz frases desconexas, está cambaleante e tem a mente afetada. Tento conseguir-lhe informações acerca das Panhards;

Acertadas em cheio, estão pegando fogo!- é a sua resposta.

Os restantes zairenses não conseguem recuar e os soldados do ELNA nem sequer desceram à lagoa. Nossas autometralhadoras estão destruídas e os tiros dos obuses 140, cada vez mais raros, acabam por cessar completamente. Eram 16:30h; desde as 07:00h estávamos sendo surrados, e eu, o homem mais avançado dos comandos não havia progredido nem 1000 metros!

Tudo está perigosamente paralisado na mortal baixada da lagoa, sem o apoio da artilharia pesada. A ajuda sul-africana não fora efetivamente real, apenas uma máscara para encobrir sua intenção de ocupar Luanda sozinhos, pelo sul. Bastariam insistir no tiro que o morro do Quifangondo seria abandonado pelos seus defensores, já com sintomas de pânico, como posteriormente se soube. Ainda tentávamos ganhar terreno quando os sul-africanos abandonaram a luta sem comunicar a ninguém, rebocando os obuses para além do Caxito e os homens sendo evacuados por helicópteros, mas levando as culatras para que não utilizássemos as armas deixadas para trás.

Nada mais restava fazer que ajudar a carregar os feridos para a retaguarda e recuperar as armas dos mortos; estava tão esgotado que nem podia com minha G-3. O bombardeio tornou-se mais intenso, mas não havia soldados para entrar em pânico como no dia 7; apenas um punhado de comandos que foram sendo levados para o morro da Cal, pela VTT. Ainda tentamos esperar mais um pouco antes de abandonarmos as posições, pois a retirada sul-africana não era do nosso conhecimento.

Deitado debaixo da VTT durante as explosões mais intensas, levei com uma pedra na cabeça, ricocheteada no pneu e que me deixou momentaneamente atordoado. O major André, levantado, com o pé nas minhas costas como num troféu de caça, ria das minhas precauções. Logo a seguir uma inofensiva folha de zinco despencou-se com estardalhaço e foi a vez dele, desprevenido, de se atirar ao solo e a minha vez de rir!

Na última leva da VTT embarquei, quase que forçando o major André para fazer o mesmo, relutante que estava em desistir da luta. Mas sozinhos não ganharíamos a guerra. Sem correrias, o veículo partiu debaixo de cerrada fuzilaria e dos incêndios das árvores, deixando-nos antes do morro da Cal, onde chegamos caminhando lentamente. Agora tínhamos certeza que a batalha de Quifangondo estava perdida, não haveria novas tentativas…

Na linha avançada do ELNA, morro da Cal, não encontramos mais que duas dezenas de comandos, o coronel Santos e Castro e o major A.Cardoso, que insistiu em voltar à frente de combate depois de socorrido.

Éramos 26 homens* e a ordem foi manter a posição. O resto do Exército de Libertação Nacional de Angola vagava desordenado e sem chefes pelas estradas que levavam à retaguarda. Ali ficaríamos defendendo a frente norte da guerra civil, na crucial noite que se avizinhava, quando às zero horas Angola receberia a independência de seu colonizador há quatro séculos, Portugal...


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Atualização, (2017). Foram 26 homens a manter o Morro da Cal, 23 portugueses e 3 brasileiros: eu, e dois gigantes de coragem, bravura em combate, competência e dedicação na luta anti comunista, atuação mantida sob sigilo até agora e já falecidos. Tendo tomado conhecimento que a informação foi desclassificada e tornada disponível para consulta pública, deixo aqui seus nomes em merecida homenagem, já que nesse pobre país são tidos como torturadores covardes(!!!) por sua atuação em cumprimento do dever, debaixo de ordens do Estado, no combate ao mesmo nefasto inimigo que lá em terras africanas enfrentávamos. José Paulo Boneschi e Theobaldo Lisboa. Em meu livro "A opção pela espada", Boneschi é identificado como "Major André" e  Theobaldo é o "Gordo". Dois "covardes" segundo a esquerda brasileira, um, Theobaldo, foi o que placidamente dormiu debaixo da saraivada de mísseis na épica Batalha de Quifangondo enquanto aguardava as ordens de avançar e Boneschi foi um dos poucos que cruzaram a ponte do Panguila debaixo de fogo, embora não fosse seu dever, mas o fez instado pelo sentimento de camaradagem a nós que aos poucos estávamos sendo dizimados logo à frente.

A eles, Boneschi e Theobaldo, e ao Coronel Santos e Castro, Homens que me honraram  com sua amizade e camaradagem debaixo de fogo, meu respeito e minhas homenagens. Foi um privilégio compartilhar com eles momentos únicos, só reservados aos que ousam.

pedro marangoni



Em Ambriz, o brasileiro José Paulo Boneschi (de camuflado) e Alves Cardoso

Ataque à Radio em Luanda, um bombardeio verde-amarelo: Boneschi (em traje civil), Theobaldo
 (com boina vermelha), e eu (ainda vestindo o arnês do paraquedas). Eles prepararam os explosivos; eu lancei.

José Paulo Boneschi

Um trabalho honesto e detalhado sobre esses brasileiros que lutaram ao lado da FNLA é a dissertação acadêmica da jornalista Gisele Lobato, sob o título "O Brasil e a independência de Angola (1975):
política externa oficial e diplomacia militar paralela" CLIQUE (PDF) .